Todos os dias chegam aos ginásios e health clubs, mulheres que têm como objetivo trabalhar a parte inferior do tronco, mais concretamente, coxas e glúteos. Na tentativa de conseguirem melhorar o tónus muscular e a aparência dessas partes corporais, as mulheres, por iniciativa própria, depois de terem visto na internet dicas de blogueiras(os) ou pela sujestão de professores mal informados, sujeitam-se a treinos de pernas e glúteos, duas, três vezes por semana e até mesmo todos os dias da semana, utilizando, muitas vezes, exercícios monoarticulares (glúteo com caneleiras, elevação da pélvis, etc) com pouca carga e muitas repetições (às vezes acima de 30), já para não falar da utilização de variações de exercícios completamente ridículos do ponto de vista biomecânico e prático. Mas, será que estas estratégias são corretas do ponto de vista da eficácia do treino? Não!
Em primeiro lugar, importa destacar que existem diferenças estruturais e fisiológicas entre Homens e Mulheres, que interferem na planificação e periodização dos treinos para membros inferiores e glúteos. Segundo Gentil (2010), essas diferenças são:
1. Anatomia: a anca das mulheres é normalmente mais larga que a dos homens o que leva a um aumento do ângulo Q, tornando mais comum o geno valgo nas mulheres. Isso faz com que a patela tenha uma tendência a sair lateralmente, aumentando a incidência de desgaste na patela, o que promove maior desgaste das cartilagens, causando problemas como a condromalácia.
2. Hormonas: Concentrações elevadas de hormonas femininas podem ter repercussões negativas na saúde dos tendões, conforme comprovam estudos de pesquisadores dinamarqueses (Hansen et al., 2008; 2009). Segundo eles, as altas concentrações de estrogênio, inibem a síntese de colágeno no tendão patelar.
3. Ativação muscular: As mulheres em geral têm maior dificuldade de ativar a musculatura posterior da coxa. Em determinados exercícios, a relação entre a ativação dos posteriores relativamente ao quadríceps chega a ser um terço da dos homens! E isso é um alerta importante, pois a ativação da musculatura posterior, diminui a tensão na patela, ou seja, quanto menos se ativa a musculatura posterior, maior a movimentação da tíbia em relação ao fêmur, o que pode dobrar a tensão no ligamento cruzado anterior.
4. Quotidiano: A moda também não ajuda muito! Há mais de 30 anos que se alerta para os problemas que a utilização de saltos altos acarretam na biomecânica da marcha. E recentemente comprovou-se que a utilização de saltos altos promove o encurtamento dos gastrocnêmios, aumentando os momentos de força anteriores nos joelhos (Cronin et al., 2012). Fatores estes, que associados, predispõem a maior sobrecarga patelofemoral.
Segundo este autor, estas são algumas das causas para a maior incidência de lesões e dores nos joelhos nas mulheres, relativamente aos homens. Pesquisas recentes confirmam esta observação: as mulheres chegam a ter cinco vezes mais rotura do ligamento cruzado anterior, as dores anteriores são 3 vezes mais frequentes em mulheres, a incidência de artrite nos joelhos é mais do dobro em comparação com os homens e 75% das artroplastias acontecem nelas.
No entanto, surge aqui uma pergunta: o que é que o treino de glúteos tem que ver com as lesões e dores nos joelhos? A resposta é simples: os exercícios que melhor trabalham esta musculatura, são aqueles de cadeia cinética fechada (agachamento, lunge, leg press, etc), realizados na amplitude total do movimento e, por isso, a extensão e flexão dos joelhos está sempre presente! Desta forma, o glúteo trabalha em pré-alongamento, levando a um alongamento irregular dos sarcómeros, aumentando assim o dano muscular, um dos 3 fatores que originam respostas hipertróficas. Segundo Gentil (2010), os estudos de FRIDEN et al (1988), McCULLY et al (1986) e ARMSTRONG et al (1991), sugerem que a contração dos músculos a partir da posição alongada causa alongamento irregular dos sarcômeros, aumentando o potencial de ocorrência das microlesões, que consistem na base de um dos modelos de hipertrofia mais conhecidos. Neste sentido, e segundo este autor, a participação do glúteo máximo no agachamento é maior, quanto maior for a amplitude de movimento. A contribuição do glúteo máximo no agachamento parcial é de 17%, no agachamento até as coxas ficarem paralelas ao solo é de 28% e chega a 35% no agachamento completo, sendo que, neste último caso, o glúteo máximo é o principal músculo envolvido no movimento, à frente, inclusive, dos músculos do quadríceps (Caterisano et al., 2002).
Ainda segundo Gentil (2012), outro ponto importante é que, durante o agachamento, a musculatura posterior passa a ser mais recrutada quando se utilizam sobrecargas, ou seja, a produção de força é importante (Shields et al., 2005). Inclusive, estudos anteriores verificaram que o aumento de carga no agachamento faz com que haja maior trabalho dos glúteos do que dos extensores de joelho (Flanagan & Salem, 2008; Bryanton et al., 2012). A sugestão é que os músculos do quadríceps seriam totalmente ativados e, para conseguir vencer sobrecargas maiores, os glúteos entrariam em ação.
Em segundo lugar, o volume de treino não deve ser exagerado e deve-se respeitar o período de recuperação muscular. Este período, compreende um espaço de tempo de 48 a 72 horas após o fim do treino, de modo que as estruturas osteoarticulares sejam completamente recuperadas. Como empiricamente se sabe, é no descanso que o organismo consegue encontrar a sua homeostasia (estado de equilíbrio orgânico) e, desta forma, adaptar-se aos estímulos a que se sujeita no treino. Deste modo, se você, mulher, treinar dia sim, dia não, ou mesmo todos os dias pernas e glúteos, acha que consegue respeitar este período de recuperação!? Já para não falar no aumento da probabilidade de lesões nos joelhos, pelo excesso de uso desta articulação!
Em terceiro lugar, esqueçam as invenções e variações ridículas que vêm na net ou mesmo no ginásio! Keep it simple! Os exercícios de cadeia cinética fechada, como por exemplo, agachamento, lunge e peso morto, já são extremamente complexos do ponto de vista biomecânico e neuromuscular. Para quê inventar variações destes exercícios, se podem conseguir excelentes resultados com os exercícios “básicos”?? Além disso, se pensarmos no leg press e no agachamento, as variações de rotação e afastamento dos pés não mudam a ativação muscular (Gentil, 2010 cit. Clark et al., 2012; Escamilla et al., 2001). Existem outras variáveis, para além da variação dos exercícios, que influenciam a resposta hipertrófica, como a Velocidade de Execução, o Intervalo de Repouso, a Intensidade e a Falha Muscular (ver os artigos, Variáveis do treino de força vs hipertrofia).
Em quarto lugar, evitem os exercícios monoarticulares, principalmente, no que se refere ao treino da região glútea. Como já vimos anteriormente, os exercícios que mais ativam esta região, são os poliarticulares, porque permitem trabalhar em maiores amplitudes e com maior sobrecarga. Como refere Gentil (2012), um dos grandes problemas dos exercícios de isolamento para glúteos é a dificuldade de se trabalhar com grandes amplitudes. Por exemplo, durante os exercícios com caneleiras, realizados com o joelho flexionado, o braço de resistência torna-se muito pequeno ao final da fase excêntrica (maior vantagem mecânica). Já quando o trabalho é realizado com o joelho estendido, a musculatura não é adequadamente alongada, pois o pé baterá no solo. Em ambos os casos, a redução da amplitude do movimento prejudica os resultados obtidos no treino, tendo em conta que essa variável é extremamente importante para os ganhos de força e massa muscular (Weiss et al., 2000; Massey et al., 2005; Gentil, 2011). Mesmo no que se refere ao treino da parte anterior da coxa, as mulheres (e até mesmo os homens), devem ter um cuidado adicional na utilização de exercícios monoarticulares como, por exemplo, a cadeira extensora. Ela promove elevados picos de tensão no ligamento cruzado anterior e, também, de compressão patelofemoral (Gentil, 2012 cit. Wilk et al., 1996; Kvist & Gillquist, 2001; Henning et al., 1985), tanto que há quase duas décadas, já existiam autores que não recomendavam a sua utilização (Signorile et al., 1994 cit. por Gentil, 2012). A sugestão será substituí-la pelos exercícios de cadeia cinética fechada, como agachamento e leg press, no entanto, a cadeira extensora poderá ser usada de forma controlada em programas de fortalecimento muscular, em indivíduos com patologias específicas, que não consigam realizar estas alternativas, ou até mesmo, em programas de hipertrofia, desde que devidamente manipuladas as variáveis volume e intensidade.
Em quinto lugar, treinem com intensidade. Hoje sabe-se que esta é uma das variáveis mais importantes nas respostas hipertróficas e, também, na redução ponderal através da redução da percentagem de massa gorda. A mulher, de uma forma geral, tende a evitar treinar com cargas mais elevadas ou realizar o típico treino de hipertrofia, pelo simples facto de pensarem que vão ficar masculinizadas. Ora, isso para além de ser falta de conhecimento, é um perfeito disparate, pois advém da visualização de determinadas mulheres (???) excessivamente musculadas e que o conseguiram com recurso a anabolizantes, um deles, a testosterona. Para que saibam, os homens em repouso, têm 10x as concentrações de testosterona das mulheres (Oliveira, 2003, cit. WRIGHT, 1980), o que ajuda a explicar os maiores ganhos de hipertrofia muscular nos homens. Desta forma, e empiricamente, facilmente se percebe que as mulheres, pelo simples facto de utilizarem maiores cargas de treino, não vão ficar como os homens. O nosso organismo funciona em larga escala através da lei do uso e desuso. Se determinadas estruturas musculares são fortemente utilizadas, elas evoluem, crescem, mas se não são utilizadas, elas regridem, diminuem de tamanho. Por isso, se ao fim de um determinado período de treino, achar que está demasiado musculada, é simples…abrande ou pare de treinar como treina!
Em sexto e último lugar, deixe-se daqueles exercícios da moda, como lunge dinâmico ou passada, agachamentos na bosú ou outras superfícies instáveis, agachamentos com uma perna no TRX, etc. Segundo Schoenfeld (2010), os exercícios de resistência realizados em superfícies instáveis, requerem uma ativação extensa da musculatura central para suportar a performance. Isto, por sua vez, resulta em reduções significativas na produção de força para os motores musculares principais, como mostraram Anderson and Behm (2004), que descobriram que a produção de força durante a execução de um press de peito, numa superfície instável, foi 59,6% menor, quando comparada com uma superfície estável. Também McBride et al. (2006), demonstraram reduções significativas na força máxima e na taxa de desenvolvimento de força (45,6 e 40,5%, respetivamente) durante a realização de um agachamento numa superfície instável, em comparação com o mesmo exercício numa superfície estável. Segundo Schoenfeld (2010), essas grandes reduções na produção de força, diminuem a tensão dinâmica para os músculos alvo, mitigando a resposta hipertrófica. Ora pense comigo: se você realizar um agachamento numa superfície instável, consegue utilizar a mesma carga que utiliza num agachamento numa superfície estável? Consegue exercer força sempre na mesma direção, ou seja, para cima? Não, porque vai ter de se tentar equilibrar e não cair para os lados ou para a frente ou para trás! A única vantagem do treino em superfícies instáveis, repercute-se na musculatura abdominal (ver artigo, Variáveis do treino de força vs hipertrofia (Parte VI)).
Portanto, para as mulheres, torna-se imprescindível planear e periodizar os treinos para membros inferiores e glúteos de forma diferente da dos homens, respeitando sempre a individualidade biológica de cada mulher, a experiência de treino, o gosto pessoal, a fase de vida, etc. Cada mulher é diferente das demais, e as repercussões de um determinado tipo de treino numa mulher, são diferentes noutra, quanto mais treiná-las da mesma forma que os homens.
Seja consciente, procure um profissional do exercício físico competente, treine com inteligência e conquiste o melhor corpo e estado de saúde que poder. Afinal de contas, mesmo que não consiga o corpo com que sempre sonhou, no mínimo, ficará com um corpo melhor que ontem e, acima de tudo, com mais saúde.
Bons treinos 😉
Referências:
Gentil, Paulo. Problemas de joelhos em mulheres – Causas e recomendações. GEASE. 2010
Gentil, Paulo. Amplitude – A qualidade esquecida. GEASE. 2002
Gentil, Paulo. Exercícios para glúteos. GEASE. 2012
Gentil, Paulo., Oliveira, Elke. Agachamento e Joelho. GEASE. 2012
Oliveira, Elke. Agachamento e Coluna. GEASE. 2003
Oliveira, Elke. Força: mulher vs homem. GEASE. 2003
Brad J Schoenfeld. The Mechanisms of Muscle Hypertrophy and Their Application to Resistance Training. Journal of Strenght and Conditioning Research (2010); 24, 10; pág. 2864-2865